quinta-feira, 24 de março de 2011

quarta-feira, 23 de março de 2011

quinta-feira, 17 de março de 2011

Tirinhas

Tirinhas

Tirinhas

Cora Coralina


Eu sou aquela mulher
a quem o tempo muito ensinou.
Ensinou a amar a vida
e não desistir da luta,
recomeçar na derrota,
renunciar a palavras
e pensamentos negativos.
Acreditar nos valores humanos
e ser otimista.

Creio na força imanente
que vai gerando a família humana.
Numa corrente luminosa
de fraternidade universal.
Creio na solidariedade humana,
na superação dos erros
e angústias do presente.
Aprendi que mais vale lutar
do que recolher tudo fácil.
Antes acreditar do que duvidar

Cora Coralina - A Procura

Andei pelos caminhos da Vida,
Caminhei pelas ruas do Destino -
procurando meu signo.
Bati na porta da Fortuna,
mandou dizer que não estava.
Bati na porta da Fama,
falou que não podia atender.
Procurei a casa da Felicidade,
a vizinha da frente me informou
que ela tinha se mudado
sem deixar novo endereço.
Procurei a morada da Fortaleza.
Ela me fez entrar: deu-me veste nova,
fez-me beber de seu vinho.
Acertei o meu caminho.

Aninha e suas pedras




Não te deixes destruir...
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.

Cora Coralina (Outubro, 1981)

Cora Coralina


Coração é terra que ninguém vê

Quis ser um dia, jardineira
de um coração.
Sachei, mondei - nada colhi.
Nasceram espinhos
e nos espinhos me feri.

Quis ser um dia, jardineira
de um coração.
Cavei, plantei.
Na terra ingrata
nada criei.

Semeador da Parábola...
Lancei a boa semente
a gestos largos...
Aves do céu levaram.
Espinhos do chão cobriram.
O resto se perdeu
na terra dura
da ingratidão

Coração é terra que ninguém vê
- diz o ditado.
Plantei, reguei, nada deu, não.
Terra de lagedo, de pedregulho,
- teu coração. Bati na porta de um coração.
Bati. Bati. Nada escutei.
Casa vazia. Porta fechada,
foi que encontrei...

Cora Coralina

Cora Coralina


Vive dentro de mim
Uma cabocla velha
De mau-olhado,
Acocorada ao pé do borralho,
Olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...

Vive dentro de mim
A lavadeira do Rio Vermelho.

Seu cheiro gostoso
D’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
Pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.

Vive dentro de mim
A mulhar cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
Toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim
A mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
Desabusada, sem preconceitos,
De casca-grossa,
De chinelinha,
E filharada.

Vive dentro de mim
A mulher roceira.
– Enxerto da terra,
Meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.

Vive dentro de mim
A mulher da vida.
Minha irmãzinha...
Tão desprezada,
Tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fardo.

Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
A vida mera das obscuras.

Charles Darwin



"A compaixão para com os animais é das mais nobres virtudes da natureza humana." (Charles Darwin)

Manoel de Barros


foto: pôr-do-sol em Dois Irmãos do Buriti, MS

"Quando a Vó me recebeu nas férias, ela me apresentou aos amigos: Este é meu neto.
Ele foi estudar no Rio e voltou de ateu.
Ela disse que eu voltei de ateu.
Aquela preposição deslocada me fantasiava de ateu.
Como quem dissesse no Carnaval: aquele menino está fantasiado de palhaço.
Minha avó entendia de regências verbais.
Ela falava de sério. Mas todo-mundo riu.
Porque aquela preposição deslocada podia fazer de uma informação um chiste.
E fez. E mais: eu acho que buscar a beleza nas palavras é uma solenidade de amor.
E pode ser instrumento de rir.
De outra feita, no meio da pelada um menino gritou: Disilimina esse, Cabeludinho.
Eu não disiliminei ninguém.
Mas aquele verbo novo trouxe um perfume de poesia à nossa quadra. Aprendi nessas férias a brincar de palavras mais do que trabalhar com elas.
Comecei a não gostar de palavra engavetada.
Aquela que não pode mudar de lugar.
Aprendi a gostar mais das palavras pelo que elas entoam do que pelo que elas informam.
Por depois ouvi um vaqueiro a cantar com saudade: Ai morena, não me escreve / que eu não sei a ler. Aquele "a" preposto ao verbo ler, ao meu ouvir, ampliava a solidão do vaqueiro."


Manoel de Barros